Eventos, IX Encontro ANPAE - ES (2017)

Tamanho da fonte: 
INFÂNCIAS E DIREITO À CIDADE: O QUE DIZEM AS CRIANÇAS SOBRE A CIDADE?
Vania Carvalho de Araújo, Victória Galter Vieira, Edson Maciel Peixoto, Ines de Oliveira Ramos, Alexandro Braga Vieira, Erika Milena de Souza, Mario de Jesus Xavier, Jordano Francesco Gagno Brito

Última alteração: 2017-01-31

Resumo


Resumo

Situar as crianças no campo de investigação sobre a cidade não é apenas retomar uma história que se configura em torno das demandas dos adultos, mas também uma possibilidade de expor alguns constrangimentos pelas quais elas passam em função de serem excluídas do planejamento da cidade. Por meio de um estudo exploratório realizado com 220 crianças com idades de cinco anos, moradoras em dez cidades localizadas em contexto rural e urbano do Estado do Espírito Santo/Brasil, esta pesquisa se propõe melhor compreender as experiências das crianças na e sobre acidade, onde e como brincam, do que mais gostam e menos gostam do lugar onde moram, enfim, quais os sentidos que atribuem à cidade.  Os resultados da investigação apontam que as crianças fazem experiência da cidade por meio de diferentes práticas sociais e culturais e suas representações sobre a cidade estão intimamente ligada às influências das imagens socialmente disponíveis e inscritas nos diferentes modos de inserção segundo as suas condições materiais de vida e de simbolização do mundo.

Palavras Chave: Culturas Infantis e Cidades; Criança e Cidades; Infância e direito à cidade.

Introdução

Situar as crianças no campo de investigação sobre a cidade não é apenas retomar uma história que se configura predominantemente em torno das demandas dos adultos, mas também uma possibilidade de expor alguns constrangimentos que elas passam em função de serem excluídas do planejamento da cidade. Assim temos, de um lado, uma cidade repartida, feita pelos adultos e para os adultos e, de outro lado, uma cidade, cujas desordens sociais resultam em proibições, segregações e tipificações de quem pode e quem não pode nela ter acesso e transitar livremente (ARAÚJO, 2008, 2011; SANTOS, 1997). Nesse processo de ordenação da cidade, novos enunciados dão conta de expor o paradoxal movimento entre a invisibilidade das crianças e a capacidade das culturas infantis inaugurarem novos dispositivos discursivos que permitam construir outras racionalidades da/na cidade. Há aqui mais do que um modo de perceber as crianças na cidade, mas reconhecê-las como produtoras de cultura e de história e não como reprodutoras passivas da cultura de massa. “As culturas da infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo” (SARMENTO, 2004, p.22). O Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257 de 2001) propõe, em suas diretrizes, a gestão da cidade por meio da participação democrática. Tal prerrogativa, infelizmente, não tem se constituído como uma realidade que considera as crianças como sujeitos ativos na formulação das políticas. Desse modo, o estatuto político da criança na cidade contemporânea não é reconhecido e, portanto, não reverbera na urbe, o que indica que as crianças não são reconhecidas no planejamento da cidade e suas narrativas não são ouvidas, portanto não se convertem em políticas públicas. A partir de um estudo exploratório qualitativo em dez municípios capixabas, esta pesquisa propõe investigar os sentidos atribuídos pelas crianças à cidade. 

Esta pesquisa desenvolveu-se por meio de um estudo exploratório com 220 crianças com idades de cinco anos, residentes em dez municípios capixabas tanto no contexto rural quanto no contexto urbano. Os espaços de encontro com as crianças foram instituições de educação infantil indicadas pelas Secretarias Municipais de Educação. As entrevistas e as análises dos dados foram realizadas, a partir, de três eixos de análise, a saber:  a) os sentidos que as crianças atribuem à cidade; b) os diferentes modos de habitar da criança em contextos urbano e/ou rural; c) a caracterização da cidade sob o ponto de vista da utilização dos espaços pelas crianças. Nos interessou colocar em análise uma concepção de cidade que pudesse emergir das experiências e narrativas das próprias crianças investigadas,  mesmo que isso significasse a busca por uma ressemantização da cidade à luz de suas observações, práticas e representações.

Desenvolvimento

Na condição de “caçadores de “achadouros da infância" (BARROS, 2003), as impressões primeiras das crianças serviram de pistas para compreendermos os sentidos atribuídos por elas à cidade por meio da pergunta inicial: do que você mais gosta do lugar onde mora? O brincar aparece como um recurso dominante. O brincar se apresenta como o grande fluxo de pertencimento a um lugar que, mesmo desprovido de sua representação objetivável, está impregnado de relações de prazer, companheirismo, cumplicidade e afetividade. As crianças remetem suas experiências ao âmbito do viver, aos vínculos afetivos estabelecidos com familiares, com a própria casa, com a casa dos “outros”-amigos, igreja e arredores. Ao relatarem do que menos gostam do lugar onde moram, as crianças pouco remetem a um lugar específico, mas às impressões primeiras de suas experiências, seja em contextos rurais, seja urbanos, pois  realidades culturais consideradas antagônicas tornam-se portadoras de sentidos comuns sobre aquilo de que não gostam, independentemente dos contextos onde vivem: “carne amassada”(R); “do mosquito da dengue” (U);  “peixe com espinho”(R); “de jambos amargos”(R); “da igreja, porque demora muito a acabar”(U). Os vínculos estabelecidos em relação à cidade parecem constituir-se mais pelo que temem ou lhes indigna que por uma integração positiva (INNERARITY, 2006). Quando questionadas sobre o que é uma cidade, ainda que a maioria das crianças afirmasse não saber, um percentual significativo referiu-se à rua. Quando indagadas sobre o que tem numa cidade? Suas falas traduzem lugares por elas vividos (a própria cidade, praia, lagoa, roça), lugares por elas conhecidos(outras cidades, lugarejos) e lugares por elas concebidos, como ruas, edificações(casas, prédios, apartamentos, etc), estabelecimentos comerciais (lojas, supermercados, shopping, etc.), elementos da natureza (árvores, pedras, areia, etc), pessoas (família, criança, policial), brinquedos (bonecas, panelinhas, Barbie). Embora em nossas análises, tais informações se apresentem categorizadas, as impressões primeiras das crianças sobre o que tem numa cidade se misturam às diferentes práticas sociais e culturais, compondo, assim, um variado espectro de informações acerca da configuração da cidade. Dessa forma “afirma-se o lugar social das crianças como sujeitos que desestabilizam, desfocam e descentram olhares adultos, que provocam e remetem os adultos a tocar em suas memórias e experiências” (DEBORTOLI, 2008, p. 80).Quais os lugares que as crianças não podem e quais podem frequentar? Essa questão expõe uma intricada relação das narrativas das crianças com a racionalidade adulta, sobretudo quando a rua aparece como o lugar que as crianças não podem frequentar e os parques e praças deixam transparecer uma certa idealização das crianças sobre a cidade, já que, nas cidades observadas, poucos espaços públicos para brincadeiras são disponibilizados. Se as crianças definem a rua como cidade e a apontam como um lugar que elas não podem frequentar, tais enunciados nos instigam a problematizar em que medida, a rua, como imagem definidora da cidade torna-se uma constante ameaça e um espaço impróprio à presença das crianças? É curioso observar que a destituição do espaço público, no qual a cidade perdeu sua “consciência de sentido comunal” (PEREIRA, 2013), não se faz imperceptível aos olhos das crianças, pois o fato de não indicarem, com frequência, espaços comunitários de convivência, como, praças ou parquinhos existentes na cidade, é porque eles não se constituem como uma realidade material.

Conclusões

Se o recrudecimento dos espaços públicos limita, cada vez mais, as possibilidades de circulação das crianças nos diferentes tempos e espaços sociais, o modo como se apropriam desses espaços e lhes atribuem sentidos indica o quanto são capazes de formular conceitos, tendo como referência os próprios constrangimentos e as possibilidades de ação e interação que estabelecem com as pessoas (parentes, amigos,etc) e com os lugares onde habitam. Considerar as diferentes formas de simbolização das crianças acerca de seus mundos de vida é perceber que elas carregam consigo as marcas das culturas dos adultos, ao mesmo tempo em que são capazes de empreender outras formas de representação sobre a realidade, o que deixa transparecer um universo de significação peculiar sobre a cidade, cujas sutilezas constituem um patrimônio social próprio das culturas infantis, ainda que em plena articulação com as culturas adultas.

 

Referências

ARAÚJO, V. C. de. Rua e escola: lugares de possíveis compartilhamentos?. Cadernos de Pesquisa em Educação PPGE-UFES, Vitória, v. 14, p. 80-101, 2008.

ARAÚJO, V. C. A criança socialmente desvalida: entre o trabalho e a ameaça da lei, In: FARIA FILHO, L. M; ARAÚJO, V. C. (Org.). História da educação e da assistência à infância no Brasil. Vitória: Edufes, 2011. p. 171-205.

BARROS, M. Memórias inventadas. São Paulo: Planeta, 2003.

BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 11 de jul. 2001. Seção 1, p. 1.

DEBORTOLI, J. A. O. Imagens contraditórias da infância: crianças e adultos na construção de uma cultura pública coletiva. In: DEBORTOLI, J. A. O; MARTINS, M. F. A; MARTINS, S. (Org.). Infâncias na metrópole. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p.71-86.

INNERARITY, D. O novo espaço público. Lisboa: Editorial Teorema, 2006.

PEREIRA, P. C. Urbanidade e consciência do comum. Para uma apresentação. In: Pereira, P.C. (Org.). Espaço público: variações críticas sobre a urbanidade. Porto: Afrontamento, 2014. p.7-15.

SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. São Paulo: HUCITEC, 1997.

SARMENTO, M. J. As Culturas da Infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. In: Sarmento, M.; CERISARA, A. B. Crianças e miúdos: Perspectivas sociopedagógicas sobre infância e educação. Porto: Edições Asa, 2004. p. 9-34.